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Álcool: a dose faz toda a diferença

Luiz Fernando Miranda e Karla Silva Ferreira


O consumo de bebidas alcoólicas envolve razões culturais, sociais e econômicas, mas quando o assunto é saúde, o álcool, se ingerido em excesso, pode causar mais dano corporal do que qualquer outra droga, sendo tóxica ao sistema digestório, fígado, pâncreas, cérebro, sistema cardiovascular, células sanguíneas e ao feto.

Em 2014, a Organização Mundial da Saúde publicou o mais recente relatório mundial sobre consumo alcoólico no mundo, indicando que o consumo médio global é de 6,2 litros de puro álcool per capita/ano, causando pelo menos 3,3 milhões de mortes anuais, principalmente em homens (7,6% das mortes dos homens contra 4% das mulheres).

As quatro doenças mais atribuídas à ingestão de álcool são: câncer, doenças cardiovasculares, neurológicas e gastrointestinais. No Brasil, o câncer já é a segunda maior causa de morte e o álcool é um grande fator de risco para o surgimento do câncer de boca, faringe e, sobretudo, de esôfago, que é o terceiro tipo de câncer de maior malignidade.

Nas células da cavidade oral, enzimas do próprio indivíduo e de bactérias bucais (álcool desidrogenases) convertem o álcool em acetaldeído, substância que possui ação carcinogênica. Portanto, quanto pior a higienização bucal em presença de álcool, maior o efeito carcinogênico em longo prazo. O álcool também tem ação direta no surgimento do câncer pelo fato de matar células superficiais da região oral, faríngea e esofágica, gerando, com isso, em longo prazo, maior renovação celular e risco de mutação, além de comprometer a capacidade de reparo do DNA às mutações.

No Brasil, o consumo de bebidas alcoólicas é mais frequente entre indivíduos com idade entre 18 e 34 anos (22% da população). Em muitas festas universitárias, raves, boates e outras, são comuns notícias de intoxicação alcoólica. Alguns estudos mostram que o ponto de corte para definir consumo abusivo de álcool é de no mínimo 30 g de etanol por dia. Na tabela abaixo, estão listadas algumas bebidas e a quantidade das mesmas que contêm 30 gramas de etanol. A dose de 60 g diária já configura risco de cirrose.


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Vamos percorrer o caminho que o álcool faz no corpo após uso abusivo. Neste caso, acompanharemos o jovem Ricardo em uma festa universitária: 

Ricardo alimenta-se pouco e sai para a festa por volta de 23h. Chegando ao local, ele compra uma bebida contendo 150 ml de vodca (55 g de álcool) e começa a bebê-la. Em contato com a boca, o álcool vai sendo absorvido pela mucosa por difusão simples e, ao ser deglutido, continua sua absorção no esôfago e estômago. Esses três locais absorvem 20% do álcool presente na bebida.

Com o estômago contendo pouco alimento, o álcool chega ao intestino com mais rapidez, local onde o restante do álcool ingerido termina de ser absorvido.  Minutos depois, ao alcançar a   corrente sanguínea,     o      álcool      se espalha pelo corpo.... cérebro, rins, pulmão, fígado etc.

Já são 3 da manhã e, ainda sem se alimentar, Ricardo continua ingerindo álcool e é tomado pelo sono. Isto ocorre porque, quando chega ao cérebro, o etanol estimula a liberação de GABA (ácido gama-aminobutírico), que induz ao sono e tem ação ansiolítica, além de provocar aumento de dopamina cerebral, molécula que resulta na sensação de prazer e estimula a busca continuada pelo álcool, ainda que acima da capacidade de metabolização pelo corpo.

OBS: A capacidade de um indivíduo sadio em metabolizar o álcool não ultrapassa 180 g de etanol/dia, com velocidade de até 200 mg/Kg/hora.

Embora se concentre mais no cérebro, rins e pulmões, é no fígado que a maior parte do etanol ingerido é metabolizado. Nas células desse órgão, o etanol é convertido em acetataldeído (no citoplasma das células) e este em ácido acético (nas mitocôndrias), gerando grande quantidade de NADH + H+ (vide reação em Figura 1). O NADH + H+ formados no citoplasma impedem a síntese de glicose.

O fígado é o responsável por normalizar os níveis de glicose no sangue quando o indivíduo não está se alimentando com carboidrato. Na ausência de carboidratos, o fígado forma glicose a partir dos aminoácidos das proteínas. Entretanto, o excesso de NADH + H+ bloqueia a formação de uma substância intermediária entre os aminoácidos das proteínas e a glicose (a transformação do malato em oxaloacetato). Além disso, o NADH + H+ também reage com o piruvato vindo do metabolismo da glicose ou de aminoácidos formando ácido láctico. Em condições normais, o ácido láctico é convertido em glicose no fígado. Porém, com excesso de etanol, este órgão não consegue metabolizar o ácido láctico em tempo hábil, o qual se acumula no sangue causando acidose (Figura 2).



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Já por volta de 5h30 da manhã, Ricardo já se encontra de mau humor devido ao baixo teor de cortisol e glicose no sangue (<50 mg de glicose por 100 mL de sangue = hipoglicemia), a visão fica turva, a sudorese é intensa e o rapaz desmaia. Se não for levado ao hospital em pouco tempo, Ricardo pode “regredir” para coma alcóolico e/ou ter parada cardiorrespiratória em função da acidose láctica (excesso de lactato no sangue).  O coma ocorre quando a glicose sanguínea cai para 30 mg de glicose/ 100 mL de sangue ou o teor de álcool atinge 0,3 g de por 100 mL de sangue. A morte pode ocorrer quando o teor de álcool atinge 0,5 g /100 mL de sangue.


Além da hipoglicemia, Ricardo já está desidratado. O álcool inibe a liberação do hormônio antidiurético, que promove a reabsorção de água pelos rins. Sendo assim, há maior perda de água pela urina, o que dá a famosa “ressaca”. Se a bebida for associada ao consumo de cafeína encontrada em “energéticos” (ler matéria sobre suplementos), a perda de água é ainda maior. O macete de observar o grau de hidratação pela cor da urina (quanto mais amarela, maior chance de desidratação) não é válido quando se ingere diurético (ex. álcool).    



A ingestão de bebidas “fracas” também causa desidratação, principalmente quando ingeridas em grande quantidade, como a cerveja. Apesar de ter muita água em relação à quantidade de álcool, a presença do álcool faz com que a perda de líquido seja maior do que a ingerida. Neste sentido, aproveitamos para fazer um alerta do perigo de se beber muita cerveja sem alimentos (incluindo água) após um “joguinho” de futebol.    


Continuando... Enquanto Ricardo é medicado, seus amigos que não ficaram tão mal e o levaram para o hospital insistem em dirigir de volta para casa e são parados pela blits. O policial atesta o consumo alcoólico. No teste do bafômetro, é detectado o álcool que é eliminado pelos pulmões. Cerca de 10% do álcool ingerido é eliminado pelos pulmões, rins e pele. Problema para os amigos!



O fato de Ricardo ter sido vítima de intoxicação pelo álcool não significa que o rapaz seja alcoolista. O alcoolista é aquele que ingere álcool cronicamente a ponto de alterar seu comportamento social e lhe causar prejuízo financeiro e síndrome de abstinência, tratando-se de uma enfermidade progressiva, que leva em média de 5 a 10 anos para se instalar. Nestes casos, a ingestão crônica de álcool pode levar à necrose hepática em função das lesões teciduais causadas pelo acúmulo de acetaldeído nas células (a inflamação irreversível do fígado é denominada cirrose hepática).


O álcool também inibe a quebra de gordura no fígado, ao mesmo tempo em que estimula a sua síntese. O ato de ingerir álcool em grandes quantidades e com muita frequência ocasiona acúmulo de gordura hepática (esteatose), o que também reduz a eficiência do órgão. Os alcoolistas também tendem à deficiência nutricional em função da substituição de refeições por álcool, pelo fato do etanol prejudicar a absorção de vitaminas (principalmente do complexo B) e elevar a excreção de minerais (ex. cálcio, zinco, magnésio). Assim, o funcionamento cognitivo e a síntese de massa muscular e mineralização óssea podem ficar comprometidos.    


O excesso de gordura no fígado, porém, difere do acúmulo de gordura abdominal. Não existe estudo que comprove que a ingestão de álcool por si só seja responsável pelo aumento da circunferência abdominal ou a famosa “barriga de chope”. A causa da adiposidade é multifatorial e gerada quando a obtenção de energia por meio dos alimentos é superior à energia gasta pelo corpo diariamente. Neste caso, para determinar o total de energia obtida pelos alimentos, a ingestão de álcool deve ser computada, uma vez que 1 g de etanol gera ao corpo 7 Kcal (100 ml de vodca, por exemplo, fornece 322 Kcal).


Diante destes malefícios, vem a pergunta: beber álcool em doses não abusivas pode promover benefícios à saúde?


Há uma linha tênue que separa os benefícios e malefícios causados pelo consumo de álcool. Segundo a American Dietetic Association, o consumo moderado reduz o risco de doenças cardiovasculares pela redução do nível de LDL-colesterol no sangue (popularmente conhecido como mau colesterol) e outros fatores ainda não muito bem esclarecidos. Mas atenção: ingestão moderada significa que não se deve ultrapassar 15 g ao dia de etanol (equivale, aproximadamente, a uma latinha de cerveja ou uma taça com 150 ml de vinho).

 

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