Características e valor nutritivo dos açucares fabricados com a cana-de-açucar
Características e valor nutritivo dos açucares fabricados com a cana-de-açucar
Karla Silva Ferreira e Luiz Fernando Miranda
Os açúcares provenientes da cana de açúcar são todos muito semelhantes. Tão semelhantes que, do ponto de vista nutricional, praticamente nenhum é melhor que outro, sejam eles mais claros, mais escuros, mais finos, com cristais maiores, mais baratos, mais caros, outros muito mais caros etc. Em uma colher de açúcar, qualquer que seja, a maior parte sempre será sacarose, independentemente da intensidade de beneficiamento recebido (Figura 1).
A sacarose é sintetizada apenas pelos vegetais. Ela é encontrada em pequenas quantidades em todas as partes das plantas porque é a forma como os vegetais fazem o transporte da glicose das folhas para o restante da planta. Há razões químicas para isso: a sacarose é menos reativa e exerce menor força osmótica que a glicose. Sua síntese pelo vegetal ocorre nas folhas, onde uma parte da glicose sintetizada é convertida em frutose. Uma enzima específica une uma molécula de glicose a uma de frutose formando a sacarose, que então é destinada para outras partes da planta. Quando a sacarose chega ao seu destino, ela é hidrolisada, liberando novamente a glicose e a frutose. Parte da frutose é reconvertida em glicose. A glicose é, então, utilizada para produção de energia, síntese de substâncias essenciais para a vida e o crescimento do vegetal (proteínas, celulose, pectina etc) ou armazenada na forma de amido. A Figura 2 ilustra a distribuição e o percurso da sacarose na planta.
Existem poucas fontes vegetais de sacarose no mundo, isto é, vegetais cujos teores de sacarose sejam elevados a ponto de sua extração ser economicamente viável. A principal é, sem dúvida, a cana-de-açúcar (um caule). A seguir, vem a beterraba. O Brasil é um grande produtor e consumidor de açúcar-de-cana.
O processo de fabricação do açúcar consiste, basicamente, na evaporação da água e retirada das impurezas do caldo de cana. O caldo de cana bruto contém entre 74% e 82% de água, 15% e 18% de sacarose e uma quantidade pequena de outras substâncias (ceras, gorduras, proteínas, gomas, pectinas, pigmentos, minerais) e impurezas/sujidades não retiradas na lavagem inicial da cana. Após a eliminação das impurezas e de quase toda a água, o açúcar fica com mais de 98% de sacarose, alguns minerais e em torno de 0,1% de umidade. A presença de vitaminas, proteínas e lipídios é descartada, pois além dos teores serem irrisórios nos caldos, são destruídas pelo calor e/ou eliminadas nos processos de clarificação. Sendo assim, além da sacarose, os únicos nutrientes que poderiam ser encontrados nos açúcares seriam alguns minerais.
A composição mineral dos açúcares deve ser condizente com a composição mineral das canas e com os processos de fabricação. Em uma pesquisa sobre a composição de caldos de cana e melados de diferentes procedências e modo de fabricação, pôde-se observar que os melados processados em moinhos e equipamentos de inox tinham teores de minerais mais baixos e condizentes com o caldo de cana de origem em relação aos produtos adquiridos no comércio. Foi observado, principalmente, elevado teor de ferro nos melados e caldos de cana adquiridos no comércio. Os pesquisadores atribuíram os teores elevados de ferro nos derivados da cana-de-açúcar ao fato do ferro ser um contaminante natural de produtos de origem vegetal, devido a sua presença no solo, e também devido à má conservação dos equipamentos utilizados no processamento do açúcar (moinhos enferrujados, encanamentos etc). De qualquer forma, é importante ter em mente que o ferro presente nos derivados da cana de açúcar, bem como em muitos outros produtos de origem vegetal, é de baixíssima biodisponibilidade.
Ainda neste estudo os pesquisadores puderam evidenciar a variação nos teores de minerais nos caldos de cana dependendo da variedade da cana e local de cultivo. Neste estudo foram analisados 16 tipos de caldos, sendo 14 deles obtidos em condições higiênicas para prevenir a contaminação dos caldos com minerais (usando equipamentos e moinhos de aço inoxidável e normas de boas práticas de fabricação de alimentos). A Figura 3 ilustra os teores máximo e mínimos de minerais detectados nestes 14 tipos de caldos de cana. A quantidade de sacarose e minerais totaliza em torno de 20 gramas. Portanto, com a eliminação da água de 100 mL de caldo de cana, obtém-se, aproximadamente, 20 gramas de açúcar cuja composição é equivalente a do caldo original
A despeito da quantidade máxima de minerais presentes nos caldos de cana, dificilmente todos poderão ser encontrados nos açúcares. Durante o processamento há etapas que adicionam metais ao caldo, especialmente cálcio e fósforo, e etapas que levam à eliminação de minerais e quaisquer outras substâncias que não sejam a sacarose, como as lavagens e centrifugações. A Figura 4 ilustra o processamento dos açúcares.
Figura 4: Etapas de fabricação do açúcar de cana.
Os agentes químicos normalmente usados na fabricação de açúcar são sulfito (SO2) e leite de cal. O leite de cal é uma solução de Ca(OH)2 preparada pela dissolução da cal (CaO, óxido de cálcio) em água. O óxido de cálcio pode ser substituído por óxido de magnésio (MgO). O cálcio e o magnésio, caso permaneçam no açúcar, podem contribuir para melhorar o valor nutritivo deste açúcar.
O dióxido de enxofre (e seus sais de sódio, potássio e cálcio) são utilizados em diversas preparações industriais tendo como limite 0,02 gramas em 100 gramas. São muito utilizados em sucos e vinhos, sendo os limites nestes alimentos mais elevados que nos demais alimentos. Na fabricação do açúcar, a sulfitação é feita para auxiliar na retirada de partículas de bagaço do caldo de cana, prevenir escurecimento e controlar o crescimento de microrganismos. A sulfitação abaixa o pH do caldo de cana de 4,8-5,3 para 3,8-4,3. Este aditivo é eliminado no decorrer da fabricação do açúcar, chegando a teores abaixo do limite estabelecido pelo Ministério da Saúde. A eliminação do sulfito é também desejável para a indústria, pois em quantidade elevada ocasiona alterações sensoriais do produto, principalmente, de sabor e odor. Embora o sulfito seja o aditivo mais visado no açúcar por parte do consumidor, seu uso na fabricação do açúcar é muito mais prejudicial para o ambiente e para o trabalhador da usina do que para a qualidade do açúcar como alimento. Devido a estes inconvenientes, as usinas de açúcar têm buscado alternativas ao uso do sulfito, sendo até o momento o ozônio e o peróxido de hidrogênio as mais promissoras no tocante ao clareamento.
Após o processo de sulfitação, ocorre a adição do leite de cal, a calagem, que eleva o pH do caldo de cana para 7,2 a 8,27. Esta condição ligeiramente alcalina contribui para reduzir a degradação da sacarose nas etapas de aquecimento posteriores e propicia a eliminação de impurezas. O dióxido de enxofre, ao ser adicionado no caldo de cana, se transforma em ácido sulfuroso, H2SO3. O hidróxido de cálcio Ca(OH)2 reage com o H2SO3 formando sulfito de cálcio (CaSO2) e água. O sulfito de cálcio, de baixa solubilidade, complexa impurezas menores que não foram eliminadas na etapa anterior formando uma borra mais fácil de ser eliminada. O leite de cal, em excesso em relação ao ácido sulfuroso, faz com que o pH fique acima de 7. Com isso, tanto o sulfito quanto a maior parte do cálcio são eliminados. Pesquisas realizadas no Brasil confirmaram este fato demonstrando que os teores de sulfito em açúcares estavam de 27 a 500 vezes menor que o estabelecido pelo Ministério da Saúde.
É também comum o uso de H3PO4 (ácido fosfórico) no processo de clarificação, pois os caldos que contêm baixo teor de fosfato (teor normal deve estar situado entre 70 e 400 mg/quilo) não são clarificados adequadamente. Outros aditivos às vezes utilizados são bentonita e polieletrólitos, que formam precipitados com impurezas ainda presentes no caldo, sendo também removidos com estas impurezas. Os bactericidas organoclorados utilizados por algumas indústrias, por serem voláteis, são eliminados ao longo do processamento do açúcar.
Após estes tratamentos o que fica no produto é, praticamente, sacarose, algum resíduo de água e de cinzas, onde se pode encontrar pequenas quantidades de alguns minerais. Entretanto, este produto pode ainda ser mais purificado e branqueado por meio do refino, onde o açúcar bruto é redissolvido em água e clarificado por meio de filtração em filtros de areia, carvão e resina. Os açúcares que recebem tratamento menos intenso ou que não passam por todas as etapas de processamento contém pigmentos e maior quantidade de água e minerais. Os pigmentos escuros são resultantes de reações de escurecimento que ocorrem durante o aquecimento do caldo e/ou partículas carbonizadas (a presença de partículas carbonizadas é indesejável e indica falhas na higienização dos equipamentos que entram em contato com o produto).
Portanto, se um açúcar for fabricado com caldos de cana que contenham os teores mais elevados de minerais, conforme mostrado na Figura 3, e não passar pelas etapas de clarificação, este açúcar poderia conter quantidade significativa do ponto de vista nutricional apenas de manganês, cálcio e magnésio. Entretanto, não é isso o que ocorre na fabricação dos açúcares. A seleção de canas com altos teores de minerais não é um fator comercialmente viável. Seria mais viável para a indústria enriquecer os açúcares com minerais.
De acordo com as normas de rotulagem de alimentos, só é permitido citar a presença de vitaminas e minerais em um alimento (exceto o sódio) quando a quantidade presente na porção for superior a 5% do valor de referência de ingestão diária recomendada (VD). Esta restrição é exatamente para evitar que o consumidor seja enganado vendo uma lista de nomes de nutrientes nos rótulos dos alimentos cujas quantidades sejam insignificantes do ponto de vista nutricional. A Figura 5 ilustra o valor nutritivo de açúcar mascavo, refinado e caldo de cana elaborado nos moldes de um rótulo nutricional. Mesmo o açúcar mascavo não possui quantidade de nenhum mineral que seja superior a 5% do VD na porção. Para corroborar este fato, pode-se observar que não se encontra nos rótulos de açúcar mascavo ou demerara produzidos por grandes indústrias de açúcar menção à presença de qualquer vitamina ou mineral. Os rótulos destes açúcares são similares aos dos seus açúcares refinado e cristal.
Figura 5: Quantidade de nutrientes em uma porção de açúcar e em 100 mL de caldo de cana com respectivas porcentagens dos Valores de Referência (VD). Adaptado de Unicamp, 2011.
Dizer que um açúcar seja fonte de algum mineral é mais longe da realidade ainda. De acordo com a legislação brasileira somente pode-se denominar um alimento de fonte de algum mineral ou vitamina se a quantidade do nutriente for, no mínimo, 15% do VD em 100 gramas ou na porção deste alimento.
A seguir listamos os açúcares fabricados com caldo de cana-de-açúcar ressaltado os processos de fabricação que os diferenciam.
Açúcares sólidos: possuem teor de água superior a 2%.
1) Açúcar orgânico: produzido sem qualquer aditivo químico tanto na fase agrícola como na industrial. Pode ter cor clara e dourada (visualmente similar ao demerara). Segue os padrões internacionais e certificação por órgãos competentes.
2) Açúcar demerara: não passa pelo processo de sulfitação. A clarificação é feita apenas com o leite de cal. Os cristais contêm melaço e “mel” residual da própria cana-de-açúcar. A textura é firme e não dissolve facilmente.
3) Açúcar Very High Polarization (VHP): é o tipo mais exportado pelo Brasil. É mais claro que o demerara e apresenta cristais amarelados. No seu branqueamento não há a utilização de anidrido sulfuroso. Há também o açúcar Very Very High Polarization (VVHP) que é mais puro que o VHP. Alta polarização significa maior teor de sacarose. Portanto, são açúcares com características do demerara porém mais puros, com teor de sacarose mais elevado.
4) Açúcar cristal e açúcar branco: em forma cristalina e produzidos sem refino. É muito utilizado na indústria.
5) Açúcar refinado, açúcar de confeiteiro, açúcar refinado granulado: são açúcares mais puros e claros. Seguem todas as etapas de fabricação. O teor de sacarose é maior que 99% e o de água da ordem de 0,1% para menos.
Açúcares líquidos: são soluções de açúcares com concentrações específicas. São preferidos pelas indústrias de alimentos e farmacêuticas pela facilidade de mistura com os demais ingredientes.
1) Xarope de açúcar invertido: açúcar líquido invertido é uma solução contendo entre 76% a 78% de mistura de glicose, frutose e sacarose em iguais proporções, 1/3 de cada. É produzido a partir de hidrólise da sacarose com ácidos, enzimas ou resinas.
2) Xarope simples ou açúcar líquido: solução de sacarose com concentrações variadas.
Açúcar mascavo ou açúcar mascavado (açúcar bruto): possui teor de água e impurezas mais elevados que os demais açúcares. Não passa pelo processo de sulfitação e lavagem da massa. Permanece com todo o “mel”, o que lhe confere cor amarronzada mais forte que a do açúcar demerara.
Açúcar light: É formado pela mistura de açúcar refinado e edulcorantes. Tem proporcionalmente menor valor energético calórico e maior poder adoçante que os açúcares refinados.
Açúcar colorido: É elaborado a partir de dois tipos de açúcares: cristal e granulado. É adicionado de corantes alimentícios para obtenção de diferentes cores.
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