Os Esquimós e sua alimentação low carb - Artigos Projeto de Extensão
Os Esquimós e sua
alimentação low carb
Diante da popularidade da dieta low carb, nós nos interessamos em obter
informações sobre aspectos de saúde de povos cuja alimentação seja restrita em
carboidrato. Neste sentido, o que primeiro nos veio à mente foram os esquimós e
sua alimentação à base de carnes de animais marinhos.
Inicialmente, sabíamos sobre os esquimós apenas o que é amplamente divulgado pela mídia e de domínio público: que habitam regiões do Polo Norte em casas de gelo; que a base da alimentação são peixes e mamíferos aquáticos; que os principais constituintes da dieta são proteínas e gorduras; que há predomínio de gorduras insaturadas em sua alimentação; que a dieta é pobre em carboidrato, vitamina C e fibras e que possuem elevada expectativa de vida, sem, contudo, haver especificação da idade que corresponde a esta elevada expectativa de vida.
Fizemos uma extensa revisão bibliográfica e encontramos informações curiosas sobre os inuíts. Alguns desses fatos nos mostram como são fantásticas as alternativas alimentares e as adaptações dos humanos aos mais diferentes ambientes.
Conhecidos popularmente como esquimós, os inuíts são povos indígenas cujo território encontra-se no Círculo Polar Ártico, incluindo o Canadá, o Alasca, a Groelândia, a Escandinávia e a Rússia. Acredita-se que o nome esquimó tenha sido originário de vizinhos indianos ao sul e significa, pejorativamente, “pessoas comedoras de carne crua”.
Três quartos dos inuíts do Canadá vivem em 53 comunidades no Noroeste, no “Inuit Nunangat”, que significa “lugar onde vivem os inuíts” – pouco mais que 43 mil habitantes. Essa população vive da caça e da pesca e residem em iglus, uma construção feita de gelo e neve para proteger do frio extremo da região polar. A temperatura dentro dos iglus pode chegar a 16ºC, enquanto do lado de fora pode chegar a 40ºC negativos. A Figura 1 ilustra a região da Terra habitada pelos inuíts.
O clima extremamente frio do local onde habitam impede a agricultura. Deste modo, a dieta tradicional dessa população tem como principais alimentos: morsas, baleias, ursos, renas (por exemplo, o caribu), peixes (por exemplo, o salmão), raposas, pássaros e seus ovos e óleo de foca. O consumo de alimentos de origem vegetal é restrito em quantidade e variedades, consistindo principalmente em: amendoim moído recolhido por ratos; frutas em baga, principalmente cranberries; e flores, talos, caules e bulbos de espécies vegetais aquáticas. Os alimentos são coletados no verão e conservados — por congelamento, desidratação ou em gordura — para serem consumidos no inverno. O óleo de foca é especialmente utilizado para conservar flores e ovos. Dessa forma, é uma dieta rica em proteínas, gordura, colesterol e retinol (proveniente das vísceras e ovos), sendo quase totalmente desprovida de carboidratos e fibras.
Para conseguirem sobreviver nessas condições, os inuíts mantiveram hábitos alimentares extraordinários, além do desenvolvimento de adaptações genéticas a fatores ambientais que os diferencia de outras populações. Dentre estas modificações genéticas estão, por exemplo, polimorfismos que têm como consequência proteção contra doenças cardiovasculares e diabetes, proteção contra o efeito oxidante dos ácidos graxos ômega-3, maior absorção de cálcio, maior produção de calor em detrimento da produção de energia e redução da estatura.
Alguns hábitos alimentares dos inuíts podem nos parecer estranhos, mas são importantes para a garantia de componentes essenciais em sua dieta. Um deles é o consumo do conteúdo do trato intestinal dos animais, que contribui, especialmente, para o fornecimento de fibras, mas também para vitaminas e compostos bioativos de origem microbiana. Outro hábito importante é o consumo de carnes cruas, que lhes garantem a quantidade necessária de vitamina C.
Por ser uma dieta pobre em frutas, legumes, hortaliças e grãos, era de se esperar que houvesse deficiência de vitamina C entre a população inuíts. A deficiência de vitamina C causa o escorbuto, doença caracterizada, inicialmente, por hemorragias nas gengivas e sangramentos. A ingestão recomendada desta vitamina para adultos saudáveis situa-se entre 45 a 100 mg por dia, entretanto, a ingestão de 6,5 a 10 mg por dia é suficiente para evitar o escorbuto. Sua incidência não foi observada entre os inuíts adeptos à dieta tradicional, que é capaz de fornecer a quantidade mínima necessária de vitamina C (10mg/dia). As principais fontes de vitamina C dos inuíts são vísceras e carnes cruas conforme mostrado no Quadro 1.
A gordura dos animais marinhos do ártico é considerada a mais insaturada dentre as gorduras animais. Estas gorduras são especialmente ricas em ácidos graxos insaturados, principalmente da família ômega 3. Estes ácidos graxos são facilmente oxidados e promovem acentuado efeito antiplaquetário. Felizmente, os inuíts possuem adaptação genética que os torna mais eficientes no metabolismo de ácidos graxos para compensar a alta ingestão de ácidos graxos da família ômega-3. Esta adaptação no metabolismo de ácidos graxos parece ter também efeito na redução da estatura dos inuíts — aproximadamente em dois centímetros.
Sem a adaptação, o elevado consumo de ácidos graxos insaturados poderia ser incompatível com a vida. Ainda assim é observado nos inuíts tendência a sangramentos que é atribuída à elevada ingestão de ácidos graxos da família ômega-3 associada à baixa ingestão de vitamina K, fator importante no processo de coagulação do sangue. As fontes tradicionais de vitamina K nesta região são, por exemplo, as algas e outras plantas nativas que podem ser encontradas apenas poucas vezes no ano.
Os inuíts possuem também uma modificação genética que os torna mais adaptados ao frio. Esta modificação faz com que uma parte maior dos nutrientes energéticos, lipídios, por exemplo, sejam utilizados para produzir calor ao invés de produzir energia. Em termos bioquímicos, isso ocorre devido à existência de uma proteína na cadeia de transporte de elétrons que desacopla o transporte de prótons, gerando calor ao invés de sintetizar ATP. Com relação ao ganho de peso, esta modificação é benéfica, pois faz com que ganhem menos peso que uma pessoa sem esta alteração quando submetidas ao consumo de dieta com igual valor energético. Entretanto, a despeito desta alteração especificamente, a incidência de obesidade entre os inuíts é mais elevada que na população canadense não inuíts.
Outro polimorfismo importante para este povo é relacionado a uma maior eficiência na absorção de cálcio em comparação com outras populações do mundo, essa adaptação genética desenvolvida se deu em consequência de restrições alimentares deste nutriente. Além disso, os inuíts possuem baixa estatura, mas uma estrutura óssea densa. Assim, a incidência de doenças ósseas, como a osteoporose, é baixa entre eles. Por outro lado, uma dieta rica em cálcio, conforme é recomendado para os ocidentais, é inapropriada para os inuíts, porque pode causar elevada excreção de cálcio pela urina (hipercalciúria) e danos aos rins.
Em 1934, os médicos Levine e Bauer chamaram a atenção para o rápido encurtamento da vida média dos inuíts do Alasca devido à susceptibilidade à tuberculose, a outras doenças e também pela redução do suprimento nativo de caça e frutos do mar. A vida média deste grupo populacional era de apenas 20 anos. Os alimentos primitivos de peixe foram amplamente restringidos pela invasão em seus riachos de salmão feitos pelas fábricas de conservas.
Os dados dos últimos censos, entretanto, mostraram aumento da expectativa de vida dos inuíts do Canadá. De acordo com os últimos dados que tivemos acesso, a expectativa de vida está na faixa de 70,0 anos, para homens, e 76,1 anos, para mulheres. Embora tenha aumentado, estão cerca de 11 anos mais curtas que a da população não indígena do Canadá. A probabilidade de viver até os 75 anos era 51%, para homens, e 63%, para mulheres — o que corresponde a índices de 25% e 21%, respectivamente, mais baixos quando em comparação com a população não indígena do Canadá.
As principais causas de mortalidade entre os inuíts são diferentes entre os sexos e faixas etárias. Para os homens, a principal causa de morte é por lesões auto infligidas, principalmente entre os 15 e 24 anos, seguido de neoplasias malignas. Para as mulheres, a principal causa de mortalidade foi por câncer e doenças respiratórias relacionadas ao tabagismo, que ocorre entre os 65 e 79 anos. No Quadro 2 são listadas as principais causas de mortalidade entre os inuíts.
Dentre os tipos de câncer com maior incidência entre a população de inuíts, destacam-se o de nasofaringe, de glândulas salivares e do esôfago. No entanto, nos últimos anos, tem havido aumento na incidência de câncer de pulmão, mama, cólon e colo do útero, denominados, em conjunto, como “cânceres modernos”.
Observamos que não há menção a câncer de intestino, mesmo sendo uma população com elevado consumo de carne e baixo consumo de antioxidantes de origem vegetal. Pode-se supor que o modo de preparo da carne seja um fator importante nesta questão. O preparo de carnes na forma de churrascos e grelhados, quando há queima do alimento, leva à formação de aminas heterocíclicas e hidrocarbonetos policíclicos, substâncias reconhecidamente carcinogênicas. Entre os inuíts há destaque para o consumo de carnes cruas e congeladas, mas não tostadas.
Há controvérsias sobre a
incidências de mortes por ataque cardíaco entre os inuíts tradicionais. O
número de registros de óbitos de inuíts por ataques cardíacos nos órgãos de saúde
canadenses é muito baixo. Como consequência, alguns pesquisadores concluíram,
inicialmente, que a baixa incidência de ataques cardíacos era devido ao elevado
consumo de ácidos graxos da família ômega-3. Recentemente, entretanto, foram
encontradas evidências de que a ingestão de ácidos graxos da família ômega-3
não possui o efeito protetor ao sistema cardiovascular conforme se pensava.
Para justificar o baixo número de registros de ataques cardíacos entre os
inuíts, foi levantada a hipótese de que a incidência de ataques cardíacos neste
povo pode ser similar ao das populações ocidentais, porém são subnotificadas em
razão do isolamento em que vivem. Mas esta hipótese está sendo descartada diante das descobertas de modificações
genéticas neste povo que faz com que tenham menores níveis de lipoproteínas de
baixa densidade e melhor eficiência no metabolismo de carboidratos. Estas
mutações os protegem de doenças cardiovasculares, diabetes e hipoglicemia
devido ao baixo consumo de carboidratos.
As informações adicionais que obtivemos sobre os inuíts reforçaram o conhecimento que tínhamos sobre a grande capacidade de adaptação dos seres humanos às diferentes condições de vida e diversidade de dietas. Mostraram que estas populações primitivas possuem características genéticas que as habilita ao consumo de dietas que seriam incompatíveis com a vida dos seres humanos modernos. Estes polimorfismos envolvem manifestações genéticas importantes e corroboram os estudos de epigenética, que têm demonstrado o efeito de fatores ambientais no aparecimento de doenças da modernidade por meio do silenciamento ou manifestação de determinados genes.
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