Manteiga ou Margarina?
Manteiga ou Margarina?
Luiza Barbosa de Souza Silva e Karla Silva Ferreira
A Sociedade Europeia de Cardiologia publicou em 2020 uma guia para manejo de dislipidemias com o objetivo de diminuir o risco cardiovascular dos pacientes. Esse guia vem causando polêmica, pois nele recomenda-se que pacientes com colesterol elevado consumam menos manteiga e mais margarina com o objetivo de redução do LDL-colesterol.
O colesterol elevado é um dos fatores de risco para o desenvolvimento de doença cardiovascular, que tem sido a principal causa de mortalidade no Brasil desde a década de 60. A Sociedade brasileira de cardiologia alerta que as doenças cardiovasculares serão responsáveis por mais de 400 mil mortes até o final desse ano no país (SBC, 2021).
O LDL-colesterol (lipoproteína de baixa densidade) elevado acarreta deposição de partículas de gordura nos vasos sanguíneos, o que junto a outros fatores contribui para o crescimento de placas ateroscleróticas. Eventualmente o aumento da placa aterosclerótica, associado a mudanças em sua composição, atinge um ponto crítico no qual se rompem e levam a formação de trombos (coágulos). Estes coágulos podem obstruir o fluxo sanguíneo resultando em angina instável, infarto do miocárdio (MI) ou morte. Dessa forma a redução do LDL sanguíneo está associado diretamente com redução do risco para desenvolvimento de doença cardiovascular aterosclerótica.
Os ácidos graxos “trans” (AGT) e os ácidos graxos saturados, em especial o láurico, mirístico e palmítico, são os fatores dietéticos com maior impacto na elevação dos níveis de LDL-colesterol. Os AGT, especialmente o elaídico, são ainda piores que os saturados, pois enquanto os saturados provocam também elevação no HDL-colesterol (lipoproteínas de alta densidade), que é um fator cardioprotetor, o elaídico causa redução do HDL.
A principal formação dos AGT é durante o processo de hidrogenação de óleos vegetais para a obtenção de produtos mais sólidos. Por este motivo as gorduras ou margarinas parcialmente hidrogenadas, bem como os produtos feitos com as mesmas, representam a principal fonte de AGT na dieta. Outra fonte destes ácidos graxos, porem em muito menor extensão, são as manteigas. Entretanto, estas últimas possuem também outros tipos de AGT, os Ácidos Linoleicos Conjugados (CLAs), que parecem ser benéficos para a saúde.
Após a comprovação de que o consumo de AGT e ácidos graxos saturados acarretavam aumento do risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares, a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconizou que a ingestão diária de AGT deveria ser inferior a 1% do consumo energético total diário e a de ácidos graxos saturados inferior a 10%. Em uma dieta com 2000
Kcal, por exemplo, a quantidade máxima de ácido graxos “trans” deveria ser 2,2 gramas e a de ácidos graxos saturados de 22,2 gramas. Uma das medidas adotadas em inúmeros países foi tornar obrigatória a informação da quantidade de gordura “trans” e gordura saturada nos rótulos nutricionais dos alimentos industrializados. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) adotou esta medida em dezembro de 2003.
A pressão dos órgãos de saúde e rejeição dos consumidores pelas margarinas feitas pelo processo de hidrogenação levaram as indústrias alimentícias a buscarem alternativas ao processo de hidrogenação. Atualmente as margarinas são quase todas produzidas pelo processo de interesterificação. Este processo consiste em misturar diferentes tipos de óleos vegetais visando obter um produto mais sólido por meio da substituição de alguns ácidos graxos insaturados por ácidos graxos saturados. Com isso não é produzida quantidade significativa de AGT, apesar de haver mudança na composição de ácidos graxos em relação ao óleo inicial, com aumento dos ácidos graxos saturados.
Outros fatores dietéticos importantes relacionados com as doenças cardiovasculares são redução da ingestão de colesterol, de açúcares e de sódio versus ingestão adequada de vitamina E, fibras, ácidos graxos poliinsaturados da família ômega-3 (ácido α-linolênico, EPA – eicosapentaenoico e DHA – docosahexaenoico) e do ácido linoleico (família ômega-6). A OMS recomenda as seguintes ingestões diárias destas substancias: máximo de 300 mg de colesterol; máximo de 10% da ingestão energética provenientes de açúcares, o que equivale a 50 gramas em uma dieta com 2000 Kcal; máximo de 2000 mg de sódio; 25 gramas de fibras; 10 gramas de vitamina E; entre 250 mg a 2 gramas de EPA + DHA; 2 gramas do ácido α-linolênico; e 15 gramas do ácido linoleico.
Com base nos teores de ácidos graxos saturados, AGT e de nutrientes protetores, os alimentos podem ser melhores ou piores para a saúde cardiovascular. Na Tabela 1 apresentamos a composição da manteiga, da margarina fabricada pelo processo de hidrogenação e da margarina fabricada pelo processo de interesterificação. Estes produtos possuem expressiva diferença entre os tipos e teores de ácidos graxos, colesterol e vitamina E; são semelhantes quanto aos teores de sódio quando fabricados com adição de sal; não são fontes do ácido graxo EPA; quanto à presença de fibra, existem no comércio algumas margarinas enriquecidas com fibras.
Com base na composição química, as margarinas fabricadas pelo processo de hidrogenação podem ser consideradas piores para a saúde. Pode-se observar que possuem teores muito elevados de AGT, especialmente o elaídico. Em segundo lugar vem a manteiga, que possui maiores teores de ácidos graxos saturados, colesterol, DHA e CLAs, porem menores teores de AGT que a margarina hidrogenada. Em primeiro lugar ficam as margarinas interesterificadas, que possuem o melhor perfil de ácidos graxos: menores teores de ácidos graxos saturados e maiores teores dos insaturados. Além disso, as margarinas possuem teores mais elevados de vitamina E.
Tabela 1: Comparação entre o valor energético e composição química de manteiga e margarinas em 100 gramas de produto
Entre parênteses, após o nome do ácido graxo, estão o número de átomos de carbono: número de ligações duplas e a família ômega a qual ele pertence, representada pela letra grega ω. CLAs: ácido linoleico conjugado. DHA: ácido docosapentaenóico.
Fonte: Unicamp (2011) e USDA (2021) os dados assinalados com *.
É interessante observar as quantidades de cada componente prejudicial para a saúde ou benéfico que podem ser ingeridas conforme a quantidade e número de vezes que consumimos manteiga ou margarina. A composição da manteiga e das margarinas mostrada na Tabela 1 está em 100 gramas. Dificilmente uma pessoa ingere esta quantidade em um dia. Uma porção destes produtos é de, aproximadamente, 10 gramas. Considerando um consumo médio, por exemplo de duas porções por dia, 20 gramas, teríamos o seguinte panorama: se forem 20 gramas de manteiga com sal isso contribuiria para a ingestão de, aproximadamente, 40 mg de colesterol, 8,8 gramas de ácidos graxos saturados, 0,5 gramas do AGT elaídico e 2 mg do DHA. Com esta quantidade de manteiga há o benefício da presença de substancias benéficas para a saúde e os teores das substancias prejudiciais estão bem abaixo do limite tolerável. Por outro lado, 20 gramas de uma margarina hidrogenada acarretaria a ingestão de 1,74 gramas do ácido elaídico, ou seja, quase que o máximo tolerável para um dia. Já a margarina produzida pelo processo de intersterificação contribuiria para a ingestão de ômega-3, de ômega-6, muito pouco de ácidos graxos saturados e nada de AGT.
Além da análise da composição dos alimentos, outros fatores são importantes e devem ser considerados, tais como: raramente conhecemos na totalidade a composição química dos alimentos; pode haver interações entre os componentes dos alimentos; há variação nos teores dos nutrientes em decorrência de características de solo e variedade, no caso dos produtos de origem vegetal, e raça, alimentação, estado fisiológico, no caso dos produtos de origem animal; pode haver substâncias desconhecidas que tenham efeito benéfico ou prejudicial para a saúde; deve-se levar em conta a quantidade e frequência de consumo do alimentos etc. As pesquisas com grupos de indivíduos ou populações confrontando consumo do alimento e incidência de doenças complementam as suposições feitas com base na composição química conhecida do alimento.
Considerando os resultados de pesquisas feitas sobre consumo de margarinas e manteigas, não ficaram dúvidas de que a margarina feita pelo processo de hidrogenação é muito prejudicial para a saúde e deve ser excluída da alimentação devido aos seus altos teores de AGT. Entretanto ela não é a única fonte de AGT da dieta. A gordura vegetal hidrogenada, vendida em barra, também fabricada pelo processo de hidrogenação, continua sendo utilizada na fabricação de muitos alimentos, principalmente biscoitos amanteigados, sovertes e empadas.
No caso da margarina fabricada por interesterificação e da manteiga, as pesquisas com indivíduos mostraram que há uma pequena melhora para a saúde quando a manteiga é substituída pela margarina interesterificada, especialmente quando o consumo de gorduras é elevado.
Com isso podemos concluir que a manteiga não precisa ser excluída da alimentação de indivíduos saudáveis e que têm dietas com baixa quantidade de gorduras, porém deve ser evitada por pessoas com colesterol alto ou que têm predisposição genética para doenças cardiovasculares.
Referências
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